domingo, abril 17, 2005

A PEREGRINA

A caminhada se faz sentir na dormência das pernas e o irrealizável, na demência da alma. E será sempre assim nos arrastados dias de areias quentes. A claridade é tal que lhe chega a turvar a vista. As trilhas se abrem para em seguida se desfazerem ao sabor dos ventos, alterando-se a cada instante. A aridez mostra que a liberdade do caminho não basta, se não se tem para onde ir. Sente-se prisioneira de seu próprio labirinto. Quisera de volta o aconchego da tenda onde o frio e a escuridão da noite não a alcançam. De onde, mesmo sem ver as estrelas, pode divisar o horizonte.
Descobre-se seguindo os mesmos rastros deixados por dias e dias de caminhada. Frestas se abrem repentinamente, obrigando-a a estancar. Olha ao redor. A paisagem monótona repete-se à direita, à esquerda, à frente, atrás. Ao alcance da vista, nada que tenha vida. Sons, somente, os do vento insuportável, que sem piedade fere a pele já tão curtida pelo sol. Senta-se.
O pensamento vaga por tempos ingênuos, quando o coração era contente. Olha para o próprio peito, não o vê. Onde o terá esquecido? Indaga pelos amores, se é que existiram. Mas, se não eram reais, por que se foi desfazendo em cada um deles?
É tarde e da secura em que se encontra, nem lágrimas consegue tirar. Põe-se em pé. Talvez encontre algo para beber. Ao longe, a fosforescência, já tão conhecida, da miragem, insistentemente, produzida pelo desejo. Mesmo na desesperança, segue.
O fim da tarde encontra-a trôpega, sedenta, confusa. Parece ver, logo ali uma construção de pedras. Arrasta-se. Está muito perto. Mais um esforço e os sentidos se perdem.
Dá-me de beber, ouve, ainda entorpecida. Surpreende-se, pois não é sua voz a pedir. Contra o sol tem dificuldade em focalizar o contorno a sua frente. Ouve o seu, já quase esquecido, nome sussurrado por aquela voz tão terna que insiste: dá-me de beber. De um salto, levanta-se, apruma-se. Tenta dizer que há tempos vaga, sem sucesso, por aqueles sítios em busca de água, quando ele lhe aponta uma fonte. Majestosa, feita de pedras, ornada pelo musgo que o tempo ali fez brotar, esparramando água em abundância. Surpresa, não consegue se aproximar. É preciso que ele a leve pela mão. Enquanto caminham seus olhares se cruzam rapidamente. Quanto mel! Incapaz de suportar as promessas ali escondidas, fixa-se à fonte. Vasculha os seus pertences e encontrando uma caneca oferece-a ao homem que a recusa dizendo: minha sede é a tua sede. Vem. Sacia-a! É quase uma senha. Farta-se, esparrama-se, encharca-se, lava-se. Reencontra a alegria. As vestes limpas readquirem as cores originais. No marrom da saia, sobressai o branco do avental. Sente-se linda. Acomoda-se ao sol, para que seus longos cabelos sequem e voltem a brilhar. Só então, cria coragem e olha de frente aquele homem. Esforça-se por retribuir toda a aceitação refletida naquele sorriso. A um gesto dele, deita a cabeça em seu colo deleitando-se em ouvir o próprio nome sendo repetido, junto às doces certezas do verdadeiro afeto. Embalada pela suave voz do desconhecido, adormece e sonha. Uma deslumbrante carruagem de fogo chega, vinda dos céus. Embarcam. Aninham-se, e lá se vão. “Duas pontas de um mesmo laço”, finalmente juntas.
(Dedicado à Maria do Egito)
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