quinta-feira, novembro 24, 2011

Nos tempos da Maria Fumaça



Santo Inácio
Jacaré
Angico
Monjolinho

.
.
Nosso trem
Tem sede e fome
Bebe água
Na parada
Põe mais lenha
Na fornalha
Faz ferver essa caldeira
Por favor
Mestre foguista
Tenho pressa de chegar
..
Santo Inácio
Jacaré
Angico
Monjolinho

.
Passa boi pensando na vida
Passa pé de manga cheirosa
Passa a casa da fazenda
Varandas em floração
Tem rio apostando corrida
O lago refresca o olhar
Reflete a luz e a paz
Lá vem o colono tranqüilo
Voltando do cafezal
P’ra co’as galinhas jantar
O sol se pondo na encosta
Dormitando nos dormentes
Os trilhos traindo as trilhas
Da virgem mata intocada
Apita na curva
Resfolega
Sobe o morro devagar
P’ra mais à frente engatar
...
Santo Inácio
Jacaré
Angico
Monjolinho

.
Já vejo a torre da Igreja
Do Bom Jesus ouço os sinos
Bênçãos da cana verde
Os acenos na porteira
Das crianças penduradas
Indicam que já está perto
Agora seu maquinista
Mostra que é especialista
Puxa a alavanca com força
Olha, está cheia a estação
Anuncia a nossa chegada
Capricha no último apito
Contente escuto em refrão:
O nome
da cidade
amada
Onde o mais simples
ribeirão
é
bonito
.
.
..
.
FOTOS

domingo, novembro 06, 2011

A torre

.

Era apenas uma torre à beira-mar. fez sua morada a convite e sob a proteção de Pedro. Os dois se revezavam na vigília. A cada navio que apontava no horizonte desciam os 456 degraus em correria. Desembestavam pelas areias. Antes que Pedro conseguisse chegar à praia, ele sendo mais vigoroso, estava pulando para dentro da pequena canoa. Ajudava seu benfeitor a subir e remava com todas as suas forças até o navio, a essas alturas, fundeado.
.
Enquanto Pedro negociava com os feitores a imediata retirada dos mais debilitados, vasculhava os porões. Corpos amontoados, gemidos, o odor repugnante não se constituíam impedimento para a busca. Procurava por sua princesa. Um dia, encontrou-a. Semimorta, suja, a pele em chagas, desmemoriada. Nem o reconheceu.
. 
Com dificuldade, driblando a vigilância, carregou-a até o esconderijo. Ninguém os seguira. Durante várias luas alimentou sua princesa. Com carinho banhava-a. Sempre cantando as cantigas que os grilhões não conseguiram espantar.  Até que começou a ouvir aquela voz afinada, que tão bem conhecia, fazendo dueto com a dele. Ela se recuperava visivelmente. Os olhos negros tão familiares voltavam a brilhar. Contava a ele de como se sentiu perdida no dia em que foram violentamente separados. Da saudade em que se transformou sua vida. Descrevia também os efeitos da violência. A aldeia vazia. Dizimada. Remanescentes, os velhos e as velhas. Até as crianças foram acorrentadas e arrastadas. Ele também falava a ela das dores que vivera. A dor de não conseguir compreender a razão de tudo aquilo que lhes acontecera, de se ver sem chão, da saudade e do medo de nunca mais revê-la. Da dor do tronco no qual constantemente pagara por conservar a altivez. Um homem revestido de nobreza não poderia se render. Nunca. Contou-lhe ainda da bondade de Pedro que um dia o acolhera. Tinha perdido os sentidos depois de um sem número de chibatadas e Pedro o recolhera no instante em que os feitores o davam como morto. Desde então vivia naquela torre.
.
Os dias passavam e os dois príncipes negros construíam uma rotina de carinhos, lembranças e sonhos. Sonhos de correr pelas matas, dos festejos na aldeia. Sonhos de reencontrar os filhos que lhes foram covardemente subtraídos. O corpo dela respondia aos cuidados. Arredondava-se. Sua pele cintilava. Os dois sentiam suas carnes arderem clamando por alforria.
.
Pedro, homem sensível, inventou uma viagem. Jogou sobre o ombro esquerdo a bolsa de couro surrado em que guardava o manual eclesiástico, óleo consagrado, uma cruz e uma muda de roupa. Abençoou-os. Ausentou-se por três dias e três noites.
.
Tempo suficiente para que uma simples torre à beira-mar se transformasse em castelo. E naquele momento os dois corações experimentaram uma enorme alegria. Estavam plantando uma semente. A de um novo reino, uma nova dinastia. A de um ébano a tal ponto soberano que tornaria impossível ao faro dos capitães-do-mato alcançar.
.
Na terceira noite uma estrela brilhou. Pedro olhando-a entendeu que seus esforços não seriam em vão. A esperança renasce sempre que o amor se realiza. E os escravos dos quais cuidava com tanto carinho um dia, longe ou perto, ergueriam uma nação livre. Sorrindo viu que era hora de voltar. Havia ainda muito a fazer.
 .
(Dedicado a São Pedro Claver)
.





sábado, outubro 01, 2011

.
DOS ESCRITOS DE SANTA TERESINHA




"Estamos num século de invenções.
Agora já não se tem a maçada de subir os degraus de uma escada; em casa dos ricos o ascensor substitui-a vantajosamente. Eu queria também encontrar um ascensor que me elevasse até Jesus, porque sou demasiado pequena para subir a rude escada da perfeição. Então, procurei nos Livros Sagrados a indicação do ascensor — objecto do meu desejo —, e li as estas palavras saídas da boca da Sabedoria eterna: Se alguém for pequenino, venha a mim.
.
Então, aproximei-me, adivinhando que tinha encontrado o que procurava, e querendo saber, ó meu Deus!, o que faríeis ao pequenino que respondesse ao vosso apelo. Continuei as minhas buscas, e eis o que encontrei: — Como uma mãe acaricia o seu filho, assim eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e embalar-vos-ei nos meus joelhos! Ah!, nunca palavras tão ternas e tão melodiosas me vieram alegrar a alma.
.
O ascensor que me há-de elevar até ao Céu, são os vossos braços, ó Jesus! Para isso não tenho necessidade de crescer; pelo contrário, é preciso que eu permaneça pequena, e que me torne cada vez mais pequena. Ó meu Deus! excedestes a minha esperança, e eu quero cantar as vossas misericórdias".
.

(História de uma Alma, Ms C 3rº)
.
.

sábado, setembro 10, 2011

Um dia ...

minha doce passageira
posso te levar por caminhos
trilhos de ferro dormentes,
por asfaltos ondulantes,
pelas trilhas poeirentas, mares
montanhas, silêncios
.
Serei até capaz
de inteiro me abrir alado
carregar-te em volteios
- és tão leve -
sobre o mundo sem alardes
meio a fogos e luzes
.
Minha doce, a ti suplico
podes a mim responder
- és perene passageira -
preciso apenas saber
aonde pretendes chegar
e logo de partida estaremos


domingo, setembro 04, 2011

Domingo





Naquela clara manhã de Domingo, a porta aberta chamava a si os que por ela passavam.
A andarilha, sentindo-se tímida, aproxima-se. Não percebe a haste de madeira propositadamente colocada logo à entrada. Ignora o convite para deixar ali seu manto empoeirado. Sacode levemente as sandálias e entra.
É recebida por abraços sorridentes. Estão todos alegres nos preparativos
para uma festa que já vai começar.
Cansada da longa caminhada, senta-se e espera. Olha à volta admirando os belos arranjos de flores, a nuvem perfumada que envolve o ambiente, as fogueiras acesas, as expressões felizes.
Os primeiros acordes fazem com que todos se levantem e cantem. Ela os imita, retribuindo os afagos dos jovens, das crianças, dos homens, das mulheres. Enche-se de inexplicável esperança, mesmo presa de leve tontura.
Percebe, agora, o quanto estão sujas suas vestes e pede perdão por não ter se livrado delas antes de entrar. Mas há ali uma fonte da qual se aproxima. Deixa que a água escorra por seu corpo, lavando cada grão de areia nele encravado, resquícios da longa vida no deserto.
Recomposta, senta-se novamente e ouve o anfitrião apresentar o filho muito amado que chegou trazendo bebida e comida em abundância. Com interesse, acompanha o vai-e-vem dos que preparam a ceia. Canta, dança, bate palmas, junto com aquele grupo, torcendo internamente para que a refeição seja logo servida. Está com muita fome e muita sede. Nem se lembra mais de quando comeu. A tontura aumenta. Falta-lhe o ar.
Chamada para ajudar na arrumação, transporta o precioso cântaro
que alguém lhe coloca nas mãos. Caminha em direção à mesa e se angustia. Miserável, não tem com o que contribuir para a festa. Suas únicas posses são um corpo dilacerado, a mente confusa, a vertigem constante. Apresenta as ofertas e volta para seu lugar. A sede aumenta. Inquieta-se.
Quando parecia não ter mais fim aquela aflição, é convidada a se aproximar da mesa do senhor, o gentil anfitrião. Um banquete!
Saciada, acomoda-se e deixa que o alimento penetre seu corpo, invadindo-lhe os sentidos.
Sem se saber adormecida ou acordada, relembra a longa e estéril caminhada pelos desertos. Lembra-se das buscas, das perguntas sem respostas, da escuridão, das paixões egoístas, do pânico. Aos poucos, fazem-se perceber os efeitos do pão e do vinho. É no coração que eles se alojam e, daquele ponto, emanam a luz que transforma a inquietação em entusiasmo, a dor em alegria, a solidão em amor fraterno. O impossível torna-se vivência concreta.
Ainda sonolenta, levanta os olhos e só então se dá conta de que está numa enorme tenda que aninha e preserva a todos. Recolhe-se novamente para que não lhe escapem os sentimentos de integração e plenitude. Faz-se tenda também, protegendo o alimento que se fez vida.
A festa está quase acabando. O calor das fogueiras foi suficiente para, sem queimar, levar a todos a um estado de fusão. Os reflexos do banquete alcançam o seu corpo. Está liquefeita. Gota d’água que se dissolve e se esparrama. Sendo uma, está em toda parte e em todos. Preenche e é preenchida. Pertence. Expande-se e compartilha a própria humanidade recém descoberta.
Como é bom estar aqui, pensa.
Os abraços, os apertos de mão, as amorosas trocas de olhares, mostram que é chegada a hora da despedida.
Alguns passos em direção ao sol do meio dia e vê o deserto logo ali à espreita.
Sem pensar, sem falar, cuida para que o encanto não se quebre. Aprendeu lá dentro que a permanência no deserto é sempre provisória mas, prevenida, leva consigo a tenda da restauração e da vida. Olha para a frente, respira fundo e se põe em marcha.

sexta-feira, julho 22, 2011

A PEDRA ROLADA

na alma o negror da morte
nas mãos os aromas
no coração um último esforço
em busca da esperança
a pedra rolada
os panos largados
o sepulcro vazio
meus olhos parados no escuro
espanto da condição humana

uma voz revestida de luz
com ternura pronuncia meu nome
afasta medo e dor
faz com que eu me veja
inteira apesar das trevas

na crua realidade o presente
mistério da eternidade

da minha própria fragilidade
leva-me a arrancar
um poder transformador

tudo foi colocado em minhas mãos
:
a verdade
o caminho
a vida
o amor
pelo amor
no amor

as escolhas... eu as terei que fazer


 À Santa Maria Madalena, no seu dia.

terça-feira, julho 12, 2011

Procrastinar

Entendi. Estás querendo me alertar. Vasculhei agendas, diários e vi que talvez tenhas razão. Quantos pedaços de mim largados nos becos escuros. Todos devidamente etiquetados, rotulados como medo, insegurança... não, não mais proclamarei em voz alta estes nomes. Não os acordarei. Tentarei ser doce, tratando-os pelos apelidos. Serei também firme ao pisar o corvo. Decidida, penso ter aprendido a lição. Detenho-me no exame das minhas anotações notando cada palavra, cada olhar. Há ali um chamado. Indefinido ainda, mas certamente um chamado. Treino o gesto de fechar as mãos para que possa impedir que o hoje me escape pelos vãos dos dedos. Já quase me sinto capaz, quando inesperadamente, um outro fantasma toma corpo. Este mais assombroso. Cai por terra a esperança de hoje atender ao chamado. De hoje ser, pois não sei o que devo ser... De hoje ir, pois não sei para onde...

sábado, julho 09, 2011

A VISITA

O brilho dos corredores, a luz filtrada pelas gelosias das amplas portas e dos janelões, por tudo atravessavam histórias e mais histórias. Acompanhávamos encantados a alegria serena. Passávamos pelas reformas para instalação da memória no sobe e desce de escadarias. Acolá o ponto onde tudo começou em resposta a um chamado do Pai. Mais vitrais magníficos, testemunhas de vidas consagradas ao amor. Ali eram atendidos os ex-escravos que chegavam famintos e doentes. Aqui os moradores de rua recebem alimento, medicação e conforto.

Mais alguns passos, repentinamente, os ruídos da movimentada avenida desaparecem. Os arcos, o pátio florido, perfumado, o canto dos pássaros, fazem um convite ao recolhimento. O tempo para. Não estamos mais no calendário. E nem em tempo algum. Apenas em um espaço-lapso. É quando o corpo se eleva. A alma toma corpo. O coração silencia. Somos a própria prece. Em estado puro. Estado de Graça.

No lento anoitecer, o toque de um sino e o aroma da sopa nos chamam de volta. É hora do jantar. À mesa antiga mostra-se concretamente a alegria de servir.
.
Depois das despedidas levamos conosco as imagens do devotamento a Jesus, realizado no cuidado aos necessitados.
Para o nosso cotidiano, a moção. A possibilidade. A certeza de que no olhar do irmão que sofre está o chamado do Amor...
.
Inspirado pelas Irmãzinhas da Imaculada Conceição, que tão alegremente nos receberam.
Dedicado à Santa Paulina, no seu dia.
Santa Paulina, rogai por nós!

quinta-feira, junho 23, 2011

CENAS PARA UM ACENO

Estaciona a carrocinha. Acomoda as sacolas. Acaricia o cachorro.
Cabisbaixo, caminha até à estante. Algumas caixinhas cuidadosamente ali acomodadas guardam um derradeiro sinal. Procura. Enfileiradas, coloridas, etiquetadas. Seus olhos brilham quando encontram o próprio nome. Zé de Jesus. Ainda tímido se reconhece. Uma toalha limpa e, em alguns instantes, o cansaço será escoado pelo ralo do chuveiro.
A insanidade abandonada, no abandono da cadeira de barbeiro, os cabelos aparados, a face escanhoada, dar-lhe-ão um corpo livre dos pecados alheios. O suficiente para sentir-se digno de sentar-se à mesa. Comida quente, sólida, gostosa. O estômago reage contente. Há quanto tempo...
Ao cerrar os olhos é invadido por um canto e quase relembra a infância. Confuso, deixa que as imagens se percam novamente, pois há muito de nada servem. Numa rápida cochilada permite-se alguns poucos e indefinidos sonhos. Recupera as forças.

Junta os trastes, assobia para o cachorro, é abraçado calorosamente, despede-se. Mais uma vez agradece pelo retalho de identidade. Encara a trilha deixando para trás a saboneteira que o distingue pelo nome. Ela ficará à espera sem nada perguntar, sem nada pedir. Zé de Jesus, rosto erguido, volta ao anonimato.

Debruçados sobre a grade da varanda, acompanhamos a cena. Somos tomados pela brisa refrescante à qual se junta a melodia do coro à capela. O homem está quase a se perder na estrada, mas nossos olhos ainda o alcançam. Lépido, papeando com o cachorro, volta-se para o adeus. Contra o lusco-fusco do poente, rápida visão nos emudece. Ao redor de nosso Zé, desenhado em brilhos, um majestoso ostensório. Jesus acena, sorri seu sorriso desdentado e segue se dissipando, confundindo-se com o caminho.

Os últimos acordes da música em ralenti acompanham as cortinas que se fecham.

sexta-feira, junho 17, 2011

segunda-feira, maio 30, 2011

A FOGUEIRA

De tanto pisar  asperezas,  meus pés sangravam. Açoitados pelo  sol, meus olhos ardiam, pareciam sangrar também. Se o calor do dia no deserto esfolava a pele, o frio da noite chagava a alma. E eu sozinha, perdida em minha caminhada. Ao longe via o que mais me parecia miragem. Uma fogueira. Enlouqueci, pensei, pois até já ouvia conversas de um grupo animado. Cautelosamente me aproximava, quando alguém começou a salmodiar marcando o canto com pausas insinuantes. Seus ecos ressoavam por toda parte.
.
Parei para melhor escutar e nem percebi um vulto desgarrando-se do conjunto e vindo em minha direção. Filha! Assustei-me com aquela aproximação e com o chamado. Uma mulher. Olhando-a bem de perto pude ver. Belíssima. Pegou-me pela mão e sem dizer mais nada levou-me para perto do fogo. A roda se abriu para me dar passagem. Vi diversos sorrisos de acolhimento. Ela me entregou uma taça de vinho, algumas tâmaras, um pedaço de pão.
.
A mesma voz, poderosa e suave, forte e doce, ao terminar o salmo passou a contar seus planos. Estaremos sempre juntos e caminharemos para um reino onde todos serão tratados como filhos do rei... você também, se quiser... dirigindo-se a mim. Eu encantada. Ele respondia às perguntas que lhe eram feitas com tanta paciência e certeza. Sim, lá na casa de meu pai cada um é filho também amado. Basta querer. Aos poucos, o cansaço foi se mostrando. Eu nem havia percebido que era tanto. Tentava manter os olhos e ouvidos bem abertos. Não queria perder uma palavra das histórias que estavam sendo contadas. Acomodei-me, encostando a cabeça no ombro da mulher que me chamara de filha. Ela me cobriu com seu manto.
.
Ainda escutando aquela voz, as interrogações e a alegria do restante do grupo e sentindo o suave toque das mãos de minha mais nova amiga, em meus cabelos, adormeci.
.
Na manhã seguinte fui acordada pelo mesmo chamado. Filha! Envolveu-me em seu olhar. Entregou-me um par de sandálias. Você vem? Ao meu sinal afirmativo, disse-me: você não é mais sozinha, mas desta grande família. Vamos! Queira caminhar em busca do reino. Meu filho nos guiará.
.
.¸.**.¸..¸.**.¸.
.
Dedicado a Nossa Mãe Maria.
É ela quem nos pega pela mão e nos leva para perto de Jesus.