sexta-feira, novembro 09, 2012

 
 
De tanto pisar asperezas, meus pés sangravam. Açoitados pelo sol meus olhos ardiam, pareciam sangrar também. Se o calor do dia no deserto esfolava a pele, o frio da noite chagava a alma. E eu sozinha, perdida em minha caminhada. Ao longe via o que mais me parecia miragem. Uma fogueira. Enlouquecia, pensei, pois até ouvia conversas de um grupo animado. Cautelosamente me aproximava, quando alguém começou a salmodiar marcando o canto com pausas insinuantes. Seus ecos ressoavam por toda parte. Parei para melhor escutar e nem percebi um vulto desgarrando-se do conjunto e vindo em minha direção. Filha! Assustei-me com aquela aproximação e com o chamado. Uma mulher. Olhando-a bem de perto pude ver. Belíssima. Pegou-me pela mão e sem dizer mais nada me levou para perto do fogo.  A roda se abriu para me dar passagem. Vi diversos sorrisos de acolhimento. Ela me entregou uma taça de vinho, algumas tâmaras, um pedaço de pão.  
A mesma voz, poderosa e suave, forte e doce, ao terminar o salmo, passou a contar seus planos. Estaremos sempre juntos e caminharemos para um reino onde todos serão tratados como filhos do rei... você também, se quiser... dirigindo-se a mim. Eu encantada. Ele respondia às perguntas que lhe eram feitas com paciência e certeza. Contava. Sim, na casa de meu pai cada um é filho também amado. Basta querer. Aos poucos, o cansaço foi se mostrando. Eu nem havia percebido que era tanto. Tentava manter os olhos e ouvidos bem abertos. Não queria perder uma palavra das histórias que estavam sendo contadas. Acomodei-me, encostando a cabeça no ombro da mulher que me chamara de filha. Ela me cobriu com seu manto. Ainda escutando aquela voz, as interrogações e a alegria do restante do grupo e sentindo o suave toque das mãos de minha mais nova amiga, em meus cabelos, adormeci.
Na manhã seguinte fui acordada pelo mesmo chamado. Filha!
Envolveu-me em seu olhar. Entregou-me um par de sandálias. Você vem? Impossível recusar tal convite depois de tão sofrida e solitária jornada. Ao meu sinal afirmativo, disse-me: você não é mais sozinha, mas desta grande família. Vamos! Vamos em busca do reino. Meu filho nos guiará.
 



quarta-feira, março 07, 2012

Maria

Envolta em tules
Os cabelos coroados por pequenos botões de rosas

Iluminada por duas velas apenas
Prendias meu olhar
Admirável visão impressionista
Da santidade escondida
.
Os lilases de tuas lágrimas
Atraíam-me para atrás de ti seguir,
Caminhar-te em afinidades
Mãe que é abraço, é ombro
E para além do habitual
Tomar do filho o sofrer
Sofrendo-o na própria carne
.
Única marca de tua humanidade
Oculta pelo tecido da dor
.
Eras minha quase identidade
Quando o cortejo estancou
Parte do véu desdobrado
No doce olhar de desvelo
Ofertado junto a uma flor
Rendida nas mãos de tua graça
.
Tu te mostravas dengosa
Aceitavas ser cortejada
.
Revelavas neste instante
Um elo que me faltava
Tinhas sensualidade e fascínio
Encantamento e o poder
.
Seduzias!
.
Foi preciso que te cobrisses
Para que eu desvendasse
Visse além da dor e de véus
Da pureza preservada
Mais um sinal da mulher
Ícone, laço, arcano
Anima a te entretecer em mim.
.
.

quarta-feira, janeiro 25, 2012

DECLARAÇÃO DE AMOR

Protegida em minha bolha
Não deixo de interrogar
Para mim sei o que és
Não sei o que para ti posso ser
.

Trago-te, então para dentro
Na mão do menino esquálido
Pedinte de cola e coca
Acaricio-te sorris e somes
Misturado às gravatas
Aos camelôs em bravatas
Às mulheres que vendem o corpo
Cidadãos sem eira e nem beira
.

Consolo-me na consolação
Do silêncio delirante
Horas tantas badaladas
Largadas pelas calçadas
.

Protegida por claustro seguro
Abro uma pequena fresta
Deixo entrar a acidez
E penso se está tudo perdido
Tens violência e a aridez
Das ruelas esquecidas
Dos rostos das mães nas favelas
Da fome de alimento e de sonhos
.

Tua face mostra as fissuras
Heranças da civilização
Feridas abertas em fosso
Agonia de dor e paixão
.

Protegida em meu carro vermelho
Envolta na tua fumaça
Vejo abrir-se uma nesga
Nas hortas das marginais
Nos jovens de uniforme
Saltimbancos da esperança
Nas flores dos canteiros centrais
E em quem dá a elas o aroma
No rico fazer cultural
Na solidariedade latente
Organizada em mutirões
Nas passeatas cívicas
Exigentes de dignidade
Mestres renomeando a vida
.

Atravesso as tuas veias e campos
Sem mais precisar proteção
Perdida em meio às vontades
Vou nas asas dos pardais
Partilhando madrigais
Me levas a te descobrir
Querendo ser como és
A conservar a magia
Nas vilas, sobrados e avessos
Travestidos na riqueza
De teu povo soberano
Guerreiro que puxa o cimento
Sabe que o belo e o bom
Amanhece trabalhando
.
Segue a divina sina
Do santo que te batiza
Bélico pacificador
És martírio, és enlevo
És betoneira incansável
És útero e uma lágrima
És desafio, és afeto
.

Abaixo o volume do rádio
Premeditando o porvir
Sempre perdendo o rumo
Sempre me encontrando em teus braços
.
De soslaio as desvairadas
Cãs brancas no retrovisor
Mostram-me de que és capaz
Saberás encontrar tua paz
.Sorrio para ti meu amor
Lanço um íntimo desejo
.
Quando minh’ alma partir
Peço aos que bem te traduzem
Enterrem meu coração sem titubeios
Nos trilhos que te conduzem
.
.
Dedicado aos homens e mulheres, crianças, adultos e idosos, paulistanos por nascimento ou escolha, todos arquitetos da beleza, tradutores da verdade. Referências que me ensinam a entender e a amar cada vez mais esta cidade.
Dedicado também ao meu carrinho vermelho que me leva pelos caminhos de São Paulo...
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