quarta-feira, novembro 21, 2007

ANATOMIA DE UM PESADELO

I
A PRIMEIRA MULHER
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De mãos dadas entramos no saguão do cinema. Vozes indistintas provocavam o zunido típico de sala de espera. Encontrando uma cadeira vazia, acomodei a menina. Sentei-me no chão ao seu lado. No canto oposto, a bomboniere rodeada de gente. Um ar estranho envolvia a cena. Não saia daí, foi a minha recomendação, desnecessária talvez, vou comprar umas balinhas. Ao apoiar a mão no piso para me erguer, apalpei um objeto. Estranho, o que fazia ali um revólver? Levantei-me já com ele nas mãos. Com dificuldade abria caminho entre aquelas pessoas sem rosto quando percebi um bando anunciando o assalto. Uma mulher de longos cabelos castanhos, vestida de guerrilheira liderava o grupo. Tentei me esconder, mas fui farejada. Ela agitou o revólver em minha direção, e eu voltei. Apenas com sinais, a mulher me intimou a lhe entregar o revólver. Abaixei-me e, com um leve impulso, fiz com que a arma deslizasse pelo chão de granito.
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II
A SEGUNDA MULHER
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Quando anunciamos o assalto, as conversas cessaram imediatamente. Pessoas sem rosto olharam-nos assustadas. Ninguém se mexia. Parecia que tínhamos o controle quando percebo aquela mulher de longos cabelos encaracolados se esgueirando contra a parede. E o que fazia ela com uma arma na mão? Apontei-lhe a minha. Ela recuou enquanto eu atravessava o saguão sem perdê-la da mira. Quando ela chegou ao lado da menina, fiz-lhe sinais para que me entregasse o revólver. Os sem-rosto colados à parede abriram um vazio no meio da sala. Ela, abaixando-se, empurrou o revólver em minha direção. Ele veio deslizando, girando, assobiando, produzindo um leve sussurro que me deixou extasiada.
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III
A MENINA

Atravessamos as portas de vidro e entramos na sala de espera. Um grande grupo aguardava o fim da sessão. Corpos sem rosto se amontoavam contra as paredes. Alguns em volta da bomboniere conversavam. O som das vozes parecia um ataque de abelhas. A recomendação, como se eu pudesse sair, pareceu sem propósito. Ela sabe que não posso. Tenho medo de gente. Tenho medo de gente sem rosto. Tenho medo de vozes, de zumbido de vozes. Tenho medo. De soslaio, acompanhei os movimentos dela. De onde saiu aquele revólver? Enrosquei as mãos em um cacho do cabelo, abaixei a cabeça, olhei para dentro e comecei minha dança. Para frente, para trás, para frente, para trás, naquela cadência que sempre chegava junto com o medo. De repente, o silêncio me paralisou. Levantei os olhos e vi. Uma mulher golpeava o chão com as botas e balançava uma arma. A outra voltava se esgueirando. Penso se ainda poderei me apossar do revólver. As duas olham-se fixamente. Enfrentam-se. A minha acompanhante se abaixa, a luta está perdida, empurra o revólver pelo chão em direção à mulher de botas. Traçando uma diagonal, ele se vai rodopiando em valsa, levando junto o meu olhar estático. O que fazíamos ali? A mulher, outra mulher, eu menina, as três únicas com rosto? Enrosquei as mãos em um cacho do cabelo, abaixei a cabeça, olhei para dentro - para frente, para trás, para frente – pêndulo invertido, não via mais ninguém. E ninguém me via.
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(Dedicado a CJ)
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domingo, novembro 11, 2007

ACASO OU SINAL?

Você se aproximou. Tocou o meu ombro. Seus lábios roçaram minha face. Gestos absolutamente formais não fosse a cena que se seguiu. O botão de seu punho enroscado em meus cabelos não permitia que nos separássemos. E quanto mais tentávamos mais se embaraçava o nó.
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Acaso ou sinal?
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Sina... de enleados caminhantes.
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(Dedicado a CJ)
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segunda-feira, novembro 05, 2007

susto

no travesseiro que era para ser só alfazemas
pousa o trevo de três folhas
inerte, sem graça, sem significado algum
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naquela manhã queria dizer
algo de esperança
ou vingança
algo de amor
ou desespero
nunca do vago
espaço em branco
colcheia vazia
regendo passos ao léu
conduzindo a suspeita
se vale dormir
se o sono não sonha
nem pesadelos produz
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se a rosa ferida
se o cravo, coitado...
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bem-me-quer-mal-me-quer
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o vento se foi
levando o jardim e seus sons
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acorde
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ou
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durma
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a poesia acabou

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