sábado, janeiro 29, 2005

CENAS PARA UM ACENO

Estaciona a carrocinha. Acomoda as sacolas. Acaricia o cachorro.
Cabisbaixo, caminha até à estante. Algumas caixinhas cuidadosamente ali acomodadas guardam um derradeiro sinal. Procura. Enfileiradas, coloridas, etiquetadas. Seus olhos brilham quando encontram o próprio nome. Zé de Jesus. Ainda tímido se reconhece. Uma toalha limpa e, em alguns instantes, o cansaço será escoado pelo ralo do chuveiro.
A insanidade abandonada, no abandono da cadeira de barbeiro, os cabelos aparados, a face escanhoada, dar-lhe-ão um corpo livre dos pecados alheios. O suficiente para sentir-se digno de sentar-se à mesa.

Comida quente, sólida, gostosa. O estômago reage contente. Há quanto tempo...
Ao cerrar os olhos é invadido por um canto e quase relembra a infância. Confuso, deixa que as imagens se percam novamente, pois há muito de nada servem.
Numa rápida cochilada permite-se alguns poucos e indefinidos sonhos.
Recupera as forças.

Junta os trastes, assobia para o cachorro, é abraçado calorosamente, despede-se. Mais uma vez agradece pelo retalho de identidade. Encara a trilha deixando para trás a saboneteira que o distingue pelo nome. Ela ficará à espera sem nada perguntar, sem nada pedir. Zé de Jesus, rosto erguido, volta ao anonimato.

Debruçados sobre a grade da varanda, acompanhamos a cena. Somos tomados pela brisa refrescante à qual se junta a melodia do coro à capela. O homem está quase a se perder na estrada, mas nossos olhos ainda o alcançam. Lépido, papeando com o cachorro, volta-se para o adeus. Contra o lusco-fusco do poente, rápida visão nos emudece. Ao redor de nosso Zé, desenhado em brilhos, um majestoso ostensório. Jesus acena, sorri seu sorriso desdentado e segue se dissipando, confundindo-se com o caminho.

Os últimos acordes da música em ralenti acompanham as cortinas que se fecham.

“O olho lhe mostra um pobre, a fé lhe mostra Jesus”.
Charles de Foucauld, a quem dedico estas cenas.

quinta-feira, janeiro 27, 2005

SOBRE O AMOR

Falar de amor dá arrepio
O assunto é desafio
É ter a alma por um fio
Sentir-se sempre no cio

É maquiar cara de cínica
Ouvir Simone e ser tímida
Olhar-se no espelho, mínima

Fingir que não está nem aí
Tendo aos saltos o coração
Responder "nem te ouvi"
Quando olhada com paixão

Mas se o doce olhar vai embora
Cansado de tanta espera
Madalena desespera
Chora, esperneia, tece a hora
Faz melodrama barato
Corre atrás de seu guerreiro
E se o amor for verdadeiro
Logo no primeiro ato
Tem-no para si, por inteiro

Lá vai ela segura
De novo desdenha o amado
Esquece toda a ternura

Sem procurar entender
Ele sai logo à procura
De quem não o faça magoado
Desse mal não quer sofrer

São jogos bem engraçados
Dos velhos tempos de Adão
Os dois andam separados
E se ao invés de apavorados
Assumem-se enamorados
Provocam do amor, a explosão

A experiência festejo
Mais velha, me regozijo
Quando m’ olham com desejo
Se for pra perder o ensejo
Perco bem antes, o juízo.

(Originariamente dedicado a Mark Twain, Ivan Lins e Joyce)
(Hoje, dedicado aos que, por amarem o amor, cultivam apenas possibilidades)

domingo, janeiro 23, 2005

REMANSO

Demoras...
Mas quando voltas me arrebatas
Se hesito me encontras
Compensas vaga indefinição

Agora...
Já me atrai o mergulho
Em lágrimas amalgamadas
Rendo-me ao teu fascínio
Dissipo-me no teu refluir

E eu que só queria estar perto
Entendo o que esperas de mim
Mais do que estar perto ou junto
Almejas fundir-se ao meu ser
Fluindo destravo as comportas
Entrego-me espraiada
Dissolvo-me no teu querer

(Inspirado por Maria Cláudia e dedicado à Nicole Jeandot)






sexta-feira, janeiro 21, 2005

A ESPERA EM TRÊS ATOS


I
Pacientemente devo esperar
Que o teu fado
Comece a tocar em mim

Tua tristeza em não me ter
Leva-me a buscar subterfúgios
Pois é além do que posso compreender



II
Indefinidamente hás de esperar
Que minha sina
Comece a se revelar em ti

Minha tristeza em não te ver
Leva-me a procurar refúgio
Onde permaneço aquém de me comprometer



III
Amorosamente tu me sondas
Em sabedoria esperas
Tresloucadamente me esperanço
E em atalhos desespero...

(Dedicado a Edith Stein)



UM ATALHO

Imagina-te silêncio no fingimento da dor,
Da palavra foge, disfarça-te pintor daltônico.
Traze o teu olhar atônito da promessa não cumprida,
Faze-te desolação, mergulha, devora teu vinho,
Embriaga-te! Expanda-te!
Faze-te consolação, cava, traze a semente,
Rega com teu sangue o chão.
Arranca da terra o verbo, engole, saboreia, partilha,
Transforma-te na própria poesia.
Teu verso será morada para as quatro estações.
Realiza-te eternidade!

(pacientemente espera-te em mim; amorosamente esperar-me-ei em ti)


(Dedicado a Fernando Pessoa e a São João da Cruz)
(Inspirado em “Mais Poemas, novos e antigos” de Benno Assmann, post do dia 7/12/04)


segunda-feira, janeiro 17, 2005

TRIPOLAR

Poucos também me entendem
Sou mar alto, agitado, tenebroso
Sou marola calma, refrescante brisa
Mas quando o inverno me atinge
Fico estática, medrosa
Sendo fria defendo a voz
Sendo gelo aprisiono o espanto
(Dedicado ao Djavan)

sexta-feira, janeiro 14, 2005

IRREVERÊNCIA A VINICIUS

resta o que se faz presente de um futuro incerto.
resta a intimidade quieta dos que se sabem afeto.
resta o raciocínio louco a imaginar trajetos.
resta a lucidez maluca,
conveniente espelho da maluquez serena.
resta o espaço aberto entre olhares mudos.
resta o gesto ambíguo, o dever latente, o querer silente.
resta a suave dor do irrealizável
e esse doce encanto no que se vê possível.
resta o sentir frenético,
o agir profético,
sutil insanidade
do fazer poético.

(dedicado a quem orienta meus atalhos)

quarta-feira, janeiro 12, 2005

RECUPERAÇÃO

Por onde andavam minhas idéias
Enquanto falavas dos signos

Em que metáforas me escondia
Enquanto tentavas mostrar
A serventia dos sinais

Em que interrogações me metia
A ponto de não escutar
O que enlevado dizias
Sobre a beleza gráfica
Pousada num texto qualquer

Hoje sinto tua falta
De teu amor à gramática
Me arrependo dos devaneios
Das exclamações reticentes
De ser pega te acenando
Para poder depois colar

Por onde é que te escondes
Em que aspas te emaranhas

Sem fôlego desassossegados
Trôpegos qual bêbados tontos
Andam meus versos a esmo

Como começar o suspiro
E recuperar teu desejo
Se nem sei usar os dois pontos

(Dedicado à Márcia Maia que nunca perdeu uma aula nessa vida)

sexta-feira, janeiro 07, 2005

PRESTIDIGITAÇÃO


Sou despertada por um alarido festivo. Ainda tonta, esfrego os olhos e chacoalho as sandálias. É embaçado o contorno do ambiente. Mesmo assim o reconheço. Estou num oásis. Sinto a sede. Aproximando-me da fonte, vejo-me refletida em suas águas. Vejo também tudo o que me cerca e um certo desconforto me atinge. Parece que mundo está ao inverso. Ali, o reverso é o real; o ilusório, palpável. O verso é o idioma corrente e o avesso ganha expressão. O tempo, que é sempre implacável, pára. Estanca a razão. Em seu lugar, sentimento. Mesmo ofuscada pude ver solidão apontando aconchego. Da dor vi nascer alegria. Vi o fogo que aquece e não queima. Vi o coxo brincando de roda. Ninguém morrendo de fome. No foco um leve pulsar, uma cadência de vida. Ao abandonar-me no ritmo, vi o que até então julgava impossível. A morte sendo abolida, o pretérito no papel de presente e, você nem vai acreditar, algo ainda mais emblemático: uma filha menina parindo a própria mãe. Espantado? Pois, espere, ainda não lhe falei da emoção. Este é só o começo da minha incrível história de amor.



(Dedicado a Gabriel García Márquez)

quinta-feira, janeiro 06, 2005

O que um breve suspirar oculta

O que é contido por um suspiro?
O que vem escondido em rápida emissão de ar?


Inspiro o que me provoca
Prendo no peito instantes,
Tentando eternizar
O que, mesmo quando bom, me faz sofrer.
Para não asfixiar, desisto, solto o corpo,
A voz em lamento vai, expira, expulsa o desejo.

E o coração, oh, pobre coração!
Continua inquieto, vendo a alma rebentar.
Nela mais do que o tolo querer,
Alojado, instalado,
O anseio!
Este sim, assombroso,
Inexprimível, apavorante.
Arrisco descobrir-lhe a razão,
Mas, a respiração teimosa,
Antes que eu me dê conta,
Volta ao ritmo normal da indagação sem resposta.

(O mistério se fecha em si mesmo)

Quisera tê-lo tocado.
Quisera tê-lo provado.
Teria encontrado, agora sabes,
No fole do suspirar,
Na aspiração da alma, o soluço,
O sopro suave, as primícias.
Delícias do mais extremado amor.


(Dedicado ao Dennis)

terça-feira, janeiro 04, 2005

APRENDIZ


Hoje sei que excesso de contentamento não mata ninguém. Sobrevivi a ele. Sobrevivi à emoção de ser paparicada, acarinhada e de ter sido protagonista de um fato inédito. A ordem natural da vida foi subvertida. Ao contrário de ser a mãe um incentivo à filha, é esta quem valida aquela. De onde vem o merecimento? Se começo a pensar em mérito, me envaideço. Preciso é reconhecer que quanto mais vivo, mais aprendo a ser aprendiz, faço a escola de mães. E agradeço a Deus por ter me mandado, antes do que filhas, mestras na arte de amar. Desde pequenas foram me oferecendo lições. Atualmente posso afirmar: todas as qualidades que alguém possa ver em mim, delas as imito. São as mais fortes referências que alguém possa ter. E agora, vocês vão me dar licença, pois, fiquei todinha tomada pela imodéstia. É o coração da mãe babona e bobona falando mais alto. Filhas queridas, meus orgulhos, amo vocês.
O post está grande e peço a vocês paciência. Este blog tem história. Quero as pessoas que a construíram aqui, juntinho de mim.
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Menina Poesia
Se é para soprar sonhos, quero ser palavra.
Se é para me enlevar em nuvem, quero ser palavra.
Se é para me desgovernar, quero ser palavra.
Se é para vagar varais, quero ser palavra.
Mas se é para ser menina, quero de verdade ser poesia.
Assim, do jeitinho que tu és.
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Definitiva Poesia
Trago comigo receio
Da vida de Internet
Nem sei se suporto invasão
Mas tenho tido a mão
De quem conhece o meio.
Nele transita com a graça
Mostrando a alma faceira
De atinada maluquete.
Sua bondade me puxa
Ensina-me a ser blogueira.
Espero corresponder
Mas nem tento imitar-lhe a raça.
O olhar apaixonado
Roubo junto com o calor
Dois nobres ingredientes
Para dar vida à palavra.
Passo, então, a agradecer:
Com versos de minha lavra
Venho mui respeitosamente
De coração desarmado
À Loba, também Beija-Flor,
Adjudicar sincero amor.
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Minha caixa de comentários, meu tesouro
Sob cada rubrica, um encontro e uma descoberta. E como tudo é estimulante! Pois cada um de vocês é um universo. De cada um bebo carinho. De cada um retiro ensinamentos. Navego pelos endereços que me deixam e me encanto. Não existe nada melhor do que encontrar pessoas, pinçar-lhes as riquezas da alma e aprender com elas. É disso que vivo. Beijos, carinho.
(Novas e amadas referências: Antônio Vieira, Ariane, Bené Chaves, Benno, Cris, Dácio, Denise, Dira, Dora, IceTriangle&IceCube, Júlio, Linaldo, Loba, Márcia Maia, Marlon Schirmann, Marta Matos, menina poesia, Nel Meirelles, Nonato Reis, Passeante, Sá, Tânia)