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Era apenas uma torre
à beira-mar. Lá
fez sua morada
a convite e sob a proteção de Pedro. Os dois se revezavam na vigília.
A cada navio
que apontava no horizonte
desciam os 456 degraus em correria.
Desembestavam pelas areias. Antes que Pedro
conseguisse chegar à praia,
ele sendo mais
vigoroso, já
estava pulando para dentro
da pequena canoa.
Ajudava seu benfeitor
a subir e remava com
todas as suas forças até o navio, a essas alturas, fundeado.
.
Enquanto Pedro negociava com os feitores
a imediata retirada
dos mais debilitados, vasculhava os porões. Corpos
amontoados, gemidos, o odor repugnante
não se constituíam impedimento
para a busca.
Procurava por sua
princesa. Um dia,
encontrou-a. Semimorta, suja, a pele em chagas, desmemoriada.
Nem o reconheceu.
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Com dificuldade,
driblando a vigilância, carregou-a até o esconderijo. Ninguém os seguira. Durante
várias luas alimentou sua princesa. Com
carinho banhava-a. Sempre
cantando as cantigas que os grilhões
não conseguiram espantar. Até que
começou a ouvir aquela voz
afinada, que tão
bem conhecia, fazendo dueto
com a dele. Ela
se recuperava visivelmente. Os olhos negros tão familiares voltavam a brilhar.
Contava a ele de como
se sentiu perdida no dia em que foram violentamente separados. Da saudade
em que
se transformou sua vida.
Descrevia também os efeitos
da violência. A aldeia
vazia. Dizimada. Remanescentes, só os velhos e
as velhas. Até as crianças
foram acorrentadas e arrastadas. Ele também falava a ela
das dores que
vivera. A dor de não
conseguir compreender a razão de tudo aquilo que lhes acontecera, de se ver sem chão, da saudade e do medo de nunca mais
revê-la. Da dor do tronco no qual constantemente
pagara por conservar
a altivez. Um
homem revestido de nobreza não poderia se render. Nunca. Contou-lhe
ainda da bondade
de Pedro que um
dia o acolhera. Tinha
perdido os sentidos depois
de um sem
número de chibatadas e Pedro o recolhera
no instante em
que os feitores
já o davam como
morto. Desde
então vivia naquela torre.
.
Os dias passavam e os dois príncipes negros
construíam uma rotina de carinhos,
lembranças e sonhos.
Sonhos de correr
pelas matas, dos festejos
na aldeia. Sonhos
de reencontrar os filhos
que lhes
foram covardemente subtraídos. O corpo
dela respondia aos cuidados. Arredondava-se.
Sua pele
cintilava. Os dois sentiam suas
carnes arderem clamando por alforria.
.
Pedro, homem sensível,
inventou uma viagem. Jogou sobre o ombro
esquerdo a bolsa de couro surrado em que guardava o manual eclesiástico, óleo
consagrado, uma cruz e uma muda de roupa. Abençoou-os. Ausentou-se por três dias e três noites.
.
Tempo suficiente
para que uma simples torre à
beira-mar se transformasse em castelo. E naquele
momento os dois corações experimentaram uma enorme alegria. Estavam plantando
uma semente. A de um novo reino, uma nova dinastia. A de um ébano a tal ponto
soberano que tornaria impossível ao faro dos capitães-do-mato alcançar.
.
Na terceira
noite uma estrela brilhou. Pedro olhando-a entendeu que seus esforços não
seriam em vão. A esperança renasce sempre que o amor se realiza. E os escravos
dos quais cuidava com tanto carinho um dia, longe ou perto, ergueriam uma nação
livre. Sorrindo viu que era hora de voltar. Havia ainda muito a fazer.
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(Dedicado
a São Pedro Claver)
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