domingo, novembro 06, 2011

A torre

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Era apenas uma torre à beira-mar. fez sua morada a convite e sob a proteção de Pedro. Os dois se revezavam na vigília. A cada navio que apontava no horizonte desciam os 456 degraus em correria. Desembestavam pelas areias. Antes que Pedro conseguisse chegar à praia, ele sendo mais vigoroso, estava pulando para dentro da pequena canoa. Ajudava seu benfeitor a subir e remava com todas as suas forças até o navio, a essas alturas, fundeado.
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Enquanto Pedro negociava com os feitores a imediata retirada dos mais debilitados, vasculhava os porões. Corpos amontoados, gemidos, o odor repugnante não se constituíam impedimento para a busca. Procurava por sua princesa. Um dia, encontrou-a. Semimorta, suja, a pele em chagas, desmemoriada. Nem o reconheceu.
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Com dificuldade, driblando a vigilância, carregou-a até o esconderijo. Ninguém os seguira. Durante várias luas alimentou sua princesa. Com carinho banhava-a. Sempre cantando as cantigas que os grilhões não conseguiram espantar.  Até que começou a ouvir aquela voz afinada, que tão bem conhecia, fazendo dueto com a dele. Ela se recuperava visivelmente. Os olhos negros tão familiares voltavam a brilhar. Contava a ele de como se sentiu perdida no dia em que foram violentamente separados. Da saudade em que se transformou sua vida. Descrevia também os efeitos da violência. A aldeia vazia. Dizimada. Remanescentes, os velhos e as velhas. Até as crianças foram acorrentadas e arrastadas. Ele também falava a ela das dores que vivera. A dor de não conseguir compreender a razão de tudo aquilo que lhes acontecera, de se ver sem chão, da saudade e do medo de nunca mais revê-la. Da dor do tronco no qual constantemente pagara por conservar a altivez. Um homem revestido de nobreza não poderia se render. Nunca. Contou-lhe ainda da bondade de Pedro que um dia o acolhera. Tinha perdido os sentidos depois de um sem número de chibatadas e Pedro o recolhera no instante em que os feitores o davam como morto. Desde então vivia naquela torre.
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Os dias passavam e os dois príncipes negros construíam uma rotina de carinhos, lembranças e sonhos. Sonhos de correr pelas matas, dos festejos na aldeia. Sonhos de reencontrar os filhos que lhes foram covardemente subtraídos. O corpo dela respondia aos cuidados. Arredondava-se. Sua pele cintilava. Os dois sentiam suas carnes arderem clamando por alforria.
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Pedro, homem sensível, inventou uma viagem. Jogou sobre o ombro esquerdo a bolsa de couro surrado em que guardava o manual eclesiástico, óleo consagrado, uma cruz e uma muda de roupa. Abençoou-os. Ausentou-se por três dias e três noites.
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Tempo suficiente para que uma simples torre à beira-mar se transformasse em castelo. E naquele momento os dois corações experimentaram uma enorme alegria. Estavam plantando uma semente. A de um novo reino, uma nova dinastia. A de um ébano a tal ponto soberano que tornaria impossível ao faro dos capitães-do-mato alcançar.
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Na terceira noite uma estrela brilhou. Pedro olhando-a entendeu que seus esforços não seriam em vão. A esperança renasce sempre que o amor se realiza. E os escravos dos quais cuidava com tanto carinho um dia, longe ou perto, ergueriam uma nação livre. Sorrindo viu que era hora de voltar. Havia ainda muito a fazer.
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(Dedicado a São Pedro Claver)
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