quarta-feira, fevereiro 16, 2005

O DESFECHO

Um estrondo, um grito:
- Ai, meu Deus!
Os três, como que petrificados, olham-se perplexos:
- Marinalva! O que você está fazendo aqui?
Do chão, ainda sobre a mesinha espatifada...
- Ai, desculpa... é que esqueci... desculpa...os olhos arregalados...
Voltando do estado catatônico, ele arranca a manta que fora cuidadosa e displicentemente ajeitada sobre o sofá e a enrola na cintura.
Ela se abaixa e ajuda Marinalva a se levantar:
- Desculpa... é que esqueci...
- Esqueceu o quê, mulher?
- Esqueci... ai, dona Adélia, deixa eu arrumar... me desculpa...
- Não vai arrumar nada! Vai para casa, Marinalva... Ai, não, meu cristal!
Estilhaçado, em mil pedaços, o cristal. Põe-se a chorar descontroladamente. Abaixa-se tentando recolher o que restara.
- Desculpa... é que... é que...
Interrompendo a gagueira choraminguenta de Marinalva ele a encaminha para fora da sala.
- É melhor você ir agora.
- É que tenho que...
- Vai Marinalva... amanhã, amanhã...
Volta-se para Adélia, ajoelhada sobre o brilho do tapete.
Pega-a pela mão, acomoda-a no sofá, afofa as almofadas, dirige-se para a eletrola e deixa que Cole Porter inunde a sala pela voz de Kiri.
Adélia, enquanto ele se aproxima, ainda convulsa, não pode deixar de pensar que já devia ter trocado aquela manta. Não sabe por que, de repente, aqueles sóis e luas começaram a incomodar... e as estrelinhas, tão desbotadas, coitadas, a própria alma...
Da cozinha, um som estridente. Marinalva, estabanada, deve ter tropeçado em alguma coisa antes de ir embora batendo a porta com novo estrondo. Mesmo assim, como gosta daquela que tanto a tem ajudado. Uma vida. Até os netinhos ela os tem estragado com mimos.
Em definitivo, a sós.
Nem notara que a mão sangrava e que ele, já sentado ao seu lado, delicadamente tentava arrancar-lhe o caquinho.
Um beijo sobre o corte, corta o choro.
Sente o calor daquela mão que continua a prender a sua. A outra, alisa-lhe os cabelos.
Alguns soluços meio às palavras.
- Lembra-se de quando ela escondeu, no forno o boletim da...
- E quase põe fogo na casa... ?
- E o dia em que a bandeja foi inteira para o colo de dona... ?
- Como você ficou histérica quando ela quebrou a imagem de Nossa Senhora das Candeias... !
Rindo, nem conseguem completar as lembranças.
- E agora, onde é que vou arrumar as suas rosas das sextas?
Adélia se espanta com a própria voz perguntando e leva a mão à boca na tentativa de conter o que pensa.
Olham-se. Percebem-se. Revivem-se.
Quando o riso de ambos se acalma, Jonathan começa a sussurrar.
Ela reconhece de imediato a primeira poesia que fez para ele. Aquela que falava do poder do olhar, do entrelaçar das mãos, da carícia nos cabelos. Delírios da juventude.
- Você ainda sabe de cor?
- Como poderia esquecer do aviso... de que estaríamos irremediavelmente atados... sorri...
Olham-se com afeto.
Em silêncio, acompanham Cole Porter.
Há quanto tempo! Por onde será que eu andei? pensa Jonathan. Entrega-se ao calor contido do corpo de sua mulher.
Adélia, com a cabeça sobre aquele ombro espadaúdo e bronzeado que bem conhece, pensa que amanhã deve sair para escolher a nova manta. Agora uma com estampa mais geométrica, talvez, e aproveitar para comprar outro vaso, quem sabe um chinês... suspira, sente o cheiro que exala do corpo de seu homem.
- Ah, quanto tempo!
Passa-lhe pela cabeça que precisa providenciar outra imagem da Senhora das Candeias.
E nada mais. Os pensamentos se apagam.

* * *

Nossa amiga Loba vem promovendo, semanalmente, verdadeiras oficinas de redação. Em uma delas desafiava-nos a terminar um conto. Resumo aqui o início da história. Uma mulher sofrida, insatisfeita com o tédio da vida de casada dirige-se ao marido dizendo querer o divórcio. Ele, sem responder, começa a tirar a roupa, na tentativa de seduzi-la. A partir deste ponto, desenvolvi o texto acima que foi publicado no lobabh.zip.net, no dia 04/02/2005, junto com as criações de todos os blogueiros que participaram da brincadeira. O meu post anterior ao de hoje, Aviso, é fruto da mesma oficina.

(Loba, hoje dedico a você.)

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