sexta-feira, março 03, 2006

NAVEGANTES

Tirou os óculos. Pousou-os sobre a mesa. Passou as mãos pela testa, recompondo-se. Com um longo suspiro, encarou-me.
- Depois de tudo, como me vês?
- Alguns fios brancos na barba por fazer, camisa impecável, as mesmas mãos ambíguas...
- Não é disso que falo...
- ... e o olhar de sempre. Nada mudou. O olhar que me vê está aí, intacto.
- Um pouco decepcionada comigo, talvez...
- ... já deverias saber que navego em outra dimensão.
- Não entendi.
- Recurso para sobrevivência.
- Continuo sem entender.
- Meu afeto por ti não está condicionado ao que fazes ou deixas de fazer. És tão determinado e tão livre! Não há outra forma de te amar a não ser liberta e incondicionalmente. E é nessa dimensão que navega meu barco. Aquela em que o horizonte se estende e assim se perpetua...
- Chegando a lugar nenhum. É o que estás querendo dizer?
- Não. Pois há um porto. Um único porto. Teus olhos... carregando neles os meus. Nada mais importa. A não ser navegar... infinitamente...
Com mãos calmas apanhou de volta os óculos. Ajustou-os ao olhar. A conversa parou. Nossas âncoras se encontravam.
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Da parede, o canto inoportuno do pássaro lembrou-me as horas.

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