quarta-feira, fevereiro 15, 2006

ANATOMIA DE UM SONHO

I
A FOTO
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Sabíamos para onde nos levava aquele trem. Únicos sons, o da locomotiva e o do choro do menino em febre. Dividi com ele a pequena coberta que agasalhava as minhas pernas. A mãe levantou-se por uns instantes, remexeu seus pertences. Eu a via de costas. Parecia que recortava alguma coisa. Com dificuldade voltou para perto de mim e com um olhar de agradecimento, entregou-me a metade de uma foto. Magnífica. O ângulo inusitado fez com que eu demorasse uns instantes para entendê-la. Múltiplos arcos góticos. De cima para baixo. Surpreendentemente não me vi sob e sim, fazendo parte deles. De dentro para fora. Do escuro para a claridade da praça onde um velho e uma criança, sentados num banco, pareciam esperar. Estáticos.
O ar já se tornava escasso no vagão superlotado. Começava-se a ouvir um ou outro gemido, um ou outro lamento.
Sabíamos para onde estávamos indo. E eu tentando decifrar aquela foto.
A velocidade diminuindo, diminuindo...
As portas foram abertas com violência. Um vento gelado chegou até nós.
Agarrei-me à visão da foto e segui a manada silenciosa. Estava dentro do instantâneo. Era o instantâneo. Por antecipação, transformara-me na abóbada nele retratada.
Lá fora, a estática claridade da praça parecia esperar. Sabíamos.
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II
A MULHER
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Ah, como gostaria de ter a posse da minha voz naquele instante. A ti perguntaria o significado de tão inesperada oferta, pois não conhecias nada sobre mim. Flagrada por uma grande angular, a partir de inusitado ponto de vista, tu me entregavas a catedral de minha cidade. Ela, inteira. A foto, um pedaço. O que terias reservado ao cortá-la, o que pretendeste guardar, não saberei. Deixaste comigo os arcos de visão perturbadora e em primeiro plano um sorriso. Entregaste-me o sorriso de teu filho. Teu próprio filho. Embora sem uma troca de palavras, nossos olhares se entendiam. Eu sabia que tu sabias para onde estávamos indo. Naquele vagão, talvez só nos duas soubéssemos. E as contradições ali, todas aparentes. Tínhamos um passado e um futuro nos esperando na claridade da praça. Em nossas mãos apenas um pedaço de teu presente que dividias comigo. E eu, parte da abóbada em grande angular, esperando a hora de descer, pois já se ouvia o apito do trem.
O ritmo da locomotiva foi-se arrefecendo até restar apenas um sopro.
Com a brutalidade que lhe era peculiar, aos gritos, a soldadesca abriu as portas.
Do pesado calor ao vento gelado. Do escuro a um flash de luz. Sabíamos para onde estávamos indo, mas o clarão do dia cegou-me durante uns minutos. Mãos muito brutas nos empurravam. Perdi-me de ti. Levaste as respostas. Deixaste-me parte de teu tesouro e a sensação de perplexidade. Acostumando-me à luz caminhei em direção ao banco onde me esperavam o velho e a criança. Estáticos.

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III
OS ARCOS
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Não é possível. Devo ter enlouquecido, pois me flagrei a conversar com arcos. E que arcos! Góticos. Sobrepostos. Majestosos. Formavam a abóbada de uma catedral. Eu incrustada bem ao centro, fazendo parte dela. E perguntando sem parar, precisava reencontrar a mulher e as respostas. Do alto olhava para baixo. Do lusco-fusco via a claridade lá fora. Aninhada tentava desvendar o mistério que a tudo envolvia. O passado e o futuro ainda me esperavam. Estáticos. De repente, pela primeira vez ouvi a voz dela. A mulher. Suave. Falta um vagão ao trem. Soltei o corpo. Ainda que em câmera lenta, agora sim, sabia para onde e para quê estava indo. Para a luz. Para a praça lá fora. O presente que me fora doado pelo afeto da enigmática mulher, este carreguei comigo. Juntos tínhamos muito trabalho pela frente. Instalei-me entre o velho e a criança. A cena adquiriu movimento.

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- Corta!
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(Inspirado n'O Pianista e dedicado à Santa Edith Stein)
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